A experiência de um peregrino no Burning Man 2023

Desde comecei minha jornada como peregrino, me preparei para viver diferentes experiências mundo afora e aprender com cada uma delas. Depois de momentos muito especiais no Caminho de Santiago, na Espanha, e na missão humanitária da Karimu Foundation na Tanzânia, chegou a vez de algo totalmente novo no Burning Man 2023.
Há 37 anos, o Burning Man atrai dezenas de milhares de pessoas ao deserto seco de Black Rock City, no estado americano de Nevada, onde é montada uma cidade temporária e autossustentável para uma celebração de música, artes e comunidade que dura uma semana. O nome “Burning Man” vem de sua cerimônia principal: a queima simbólica de uma grande escultura de madeira chamada “Man”.
Com cultura, valores e organização próprios, o Burning Man por si só já traz uma série de lições aos participantes. E a edição deste ano ainda teve um componente extra: dois dias de chuva que deixaram o público ilhado no meio de um lamaçal e atrasaram o Exodus, quando todos vão embora com o compromisso de não deixar nem um fio de cabelo sequer para trás.
Para alguns, o Burning Man é uma religião. Para outras, uma festa. Para uns, um festival de música criado para substituir Woodstock. Para outros, uma viagem para usar drogas. Eu sempre fui atraído pela exclusividade do evento. E, por algum motivo, achava que somente convidados poderiam ir.
A oportunidade chegou num papo para ajudar o amigo Manoel Lemos a entender o curso de Stanford SEP, quando ele me convidou para me juntar com ele e o Anderson Thees nessa viagem. O simples fato de estar com eles, Jedis poderosos que eu admiro muito, já me fascinava, pois sabia que iria aprender muita coisa.
Nos papos preliminares, o Anderson já começou a me explicar como as coisas funcionam lá, mas o que mais me chamou a atenção foi me mandar ler o manual com os princípios do Burning Man (que são inclusão radical, presentear, descomoditização, autossuficiência radical, auto expressão radical, esforço comunitário, responsabilidade cívica, não deixar rastros, participação e imediatismo). Entendi que era muito importante eu entender cada um para poder morar e viver em Black Rock City (BRC) por uma semana.
Nas reuniões do acampamento (camp) Amazone, onde moramos durante o evento, também vi a importância dos valores.
Abaixo, compartilho algumas das minhas percepções:
- Criatividade: por conta dos valores de auto expressão e inclusão radicais, as pessoas encontram um ambiente perfeito para se expressarem sem nenhum medo de repressão. Isso faz explodir a mágica da criatividade em tudo o que você olha, respira, vive, escuta. O Burning Man (BM) se torna um museu de criatividade vivo a céu aberto durante 8 dias, 24h por dia. Eu vi um papai Noel numa balada, gente praticando naturismo, figurantes de “Star Wars” e “Mad Max”, bem como frequentadores dos carnavais do Brasil, gente com gravata borboleta, todo mundo junto.
- Senso de comunidade: desde as reuniões do camp, comecei a ouvir as pessoas chamando o grupo de “família”. Quando você chega lá, na prática começa a ver que atitudes práticas que expressam o senso de comunidade o tempo todo: no portão para o Greetings (recepção), as pessoas te recebem com um grande abraço e falam “welcome home!”. Quando você chega ou encontra as pessoas (mesmo que estranhos), elas normalmente te dão um grande abraço, como um membro da família que você não via há muito tempo. As pessoas cuidam e ajudam umas às outras como familiares. As pessoas dividem tudo usando o princípio de gifting (presentes). Em BRC, o único produto vendido é gelo. O resto é dado, oferecido. Para os participantes mais antigos e mais “raiz”, quando você volta para a civilização, eles perguntam: “Did you go to the outer world?”.
- Vibe, alto astral: praticamente todo mundo em BRC está feliz e de bem com a vida. Quando você olha qualquer pessoa nos olhos, ela responde com um sorriso, mesmo que sejam estranhas.
- Lugar e condições de vida: o BM é feito num deserto, onde há uma poeira que impregna absolutamente a todos e tudo. Não é areia, é um pó. É tudo muito seco, venta muito, e é muito comum você enfrentar pequenas tempestades de areia que duram alguns segundos a alguns minutos. Além disso, a cidade de 70.000 é grande e isso me chamou a atenção, nunca mais vou esquecer a sensação quando cheguei na Playa (centro da cidade em forma de relógio) e vi a grandiosidade do evento, principalmente com as luzinhas das bikes, carros, do Man, do Templo, da cidade. O diâmetro da Playa com o Man no centro tem 1 milha (1.6 km), por isso é fundamental usar bikes iluminadas para andar pela cidade.
- Não deixar rastros: esse princípio é o que mais deixa nossa rotina mais complicada em BRC. Os moradores da cidade levam tudo o que precisam e TÊM que levar tudo de volta. Isso inclui seu lixo, seu xixi, a água que você tomou banho, os seus fios de cabelo que caem no chão. Isso faz você repensar sua rotina. Por exemplo: escova os dentes com muito menos água e cospe o resto numa garrafinha vazia. O evento tem uma operação que limpa os banheiros algumas vezes por dia e leva embora o que você jogou lá. Alguns camps oferecem um esquema para tomar banho, mas normalmente ele acontece com lenços umedecidos e só.
- Agito: para vocês entenderem a grandeza do evento, pensem que há mais de 100 raves ao mesmo tempo num mesmo lugar. Isso é o BM. E apesar de existirem inúmeros pontos onde você escuta outros tipos de música (fomos num show de uma banda cover do Pink Floyd), a maioria das baladas é de música eletrônica.
- Fuga da realidade: muitas pessoas usam drogas enquanto estão em BRC, e acho que isso não é diferente do que se vive no mundo. Acredito que isso vem motivado por uma busca de viver experiências e realidades novas, e principalmente fugir do mundo em que vivemos. Não vi ninguém sendo inconveniente ou agressivo por conta disso, mas sei que quando acontece a polícia/rangers de BRC retiram esses indivíduos do evento imediatamente. Também não vi ou me senti desprezado ou excluído por apenas beber cerveja e um pouco de whiskey (únicas drogas que usei). Usar drogas ilícitas em BRC não é permitido, pois a cidade segue as leis federais americanas. As pessoas que fazem correm seus próprios riscos.
Tenho reforçado muito que o sucesso de uma empresa se dá principalmente pelo estabelecimento de uma cultura forte. Com ela, você determina quais tipos de comportamento aquela entidade/empresa/governo vai ter e cria rituais para comunicar e fazer com que todos sigam, ajam e vivam de acordo com esses princípios.
É impressionante que o Burning Man, num aparente caos com regras super simples, funcione perfeitamente bem. É uma anarquia que se organiza nos princípios, com todo mundo alinhado com esses princípios. A bagunça se organiza, a criatividade brota, a energia e felicidade aparecem em cada grão de poeira, mesmo num lugar extremamente inóspito.
Neste ano, mesmo com a tempestade e com o lamaçal que a cidade se transformou, vi muito pouco dos valores se quebrando. As pessoas continuaram se divertindo, se ajudando, criando, convivendo.
Volto de BRC com muitas lições de como a humanidade e a sociedade podem melhorar. Acho que todo mundo que tenha a oportunidade deveria ir pelo menos uma vez ao evento. Infelizmente, é um experimento difícil de ser aplicado no mundo real, mas o Burning Man tem o poder de provocar uma grande reflexão e transformação por quem mora lá por uma semana. Quem sabe movimentando grãozinho de poeira, um dia possamos ter uma grande tempestade de coisas boas melhorando nossa convivência como sociedade?